Boas!
A Alice está na fase hiper mega power blaster bagunceira. Mexe em tudo, tira tudo do lugar, escala as cadeias de montanhas do safá e das mesas da casa. A Priscila vai para a faculdade à noite (esse ano acaba!) e eu fico com as meninas. Dá um trabalhão (às vezes bem "ão" mesmo!), mas é o ponto alto do meu dia. Sou feliz de ter uma profissão que me permite ver as meninas crescerem, estar em casa todos os dias no almoço e no jantar, levá-las ao colégio e ir buscar.
Numa dessas noites a Alice decidiu por a baixo todos os meus livros - e casa de advogado, via de regra, tem livro que não caba mais. Na hora da (re)arrumação, encontrei "Cem dias entre céu e mar", do Amyr Khan Klink. Havia uma fina camada de poeira na capa. As páginas da 32ª impressão da Companhia das Letras já estavam amareladas. Meus olhos se perderam no vazio por alguns instantes...
Sem querer a minha baixinha tão amada me levou para longe, muito longe. Em segundos eu estava novamente na manhã do dia 11 de dezembro de 1999, em uma livraria do aeroporto do Congonhas, em São Paulo, escolhendo um livro para ler durante o voo até Cuiabá. Depois de oito anos do mais absoluto silêncio, da mais completa ausência, estava indo reencontrar meu pai, aquela altura já carcomido pelo câncer.
Eu já estava no mar, mas ainda não velejava.Tinha um caiaque mistral, modelo surfinho e a travessia a remo do Atlântico me soou um feito assombroso. Devorei boa parte do livro no turbulento voo da VASP. Sai de São Paulo e também de Lüderitz; cheguei a Cuaibá e também à Praia da Espera.
Fiquei "amigo" do Klink. Entre um cochilo e outro de meu pai, eu lia o livro na cabeceira da cama. Li para ele alguns trechos, mas tenho dúvidas se ele ouviu alguma coisa. De repente eu precisava absurdamente de um casaco vermelho. Um navegador de verdade tinha que ter um casaco vermelho e era isso o que eu queria ser. Fiquei com essa ideia em minha mente por muito, muito tempo.
Voltei para São Paulo no dia 15 de dezembro, às vésperas do ano 2000 - e aqui cabe um parenteses: para nós, viajantes do século passado, o ano 2000 era uma coisa absolutamente mágica. Se o mundo não acabasse no Armagedom nuclear, todos nós teríamos carros voadores, amigos vindos do futuro, robôs empregadas domésticas e telefones celulares!
Em janeiro do novo milênio comprei um caiaque maior. Ia começar a navegar para outras águas. Ir mais longe. Sempre mais longe. Remava todos os dias de manhã, sem trégua, sem descanso, cruzando meu próprio oceano (que já era "só até ali!"). Em um desses dias, encontrei uma nave vermelha atracada no Pier 26.
Surtei!
No dia seguinte voltei com uma máquina fotográfica (de filme!) e bati trinta e seis fotos. Revelei no mesmo dia. Eram tantas fotos que se não estivéssemos na época do Windows 95 e do Netscape 2.1 dava para reconstruir o barco em 3D. Guardei uma dessas fotografias como marcador de livro - que nessas alturas já era outro, Mar Sem Fim, recém lançado.
Em agosto de 2000 "meu amigo" veio a Santos. Tarde de autógrafos na livraria Martins Fontes, na Avenida Ana Costa. Eu fui o segundo da fila. Ao abrir o livro, meu "amigãozão" viu a foto e a tomou em seus dedos: "- Já está com o mastro novo", disse com o ar meio tímido, meio blasé que lhe é característico. "-Mande um e-mail para o escritório e vá lá tirar fotos dentro do barco".
Caramba! Eu tinha vinte anos, um fiat uno preto ano 1997 e acabava de conhecer meu maior ídolo! E ele me "convidou" para ir na "casa" dele! Putz, se eu fosse mulher, eu ficava comigo!
Que fiz eu? Mandei o tal e-mail.
E outro.
E outro.
E depois outro...
Um dia veio a resposta: o barco estava docado, para reforma, e não poderia ser visitado. Achei estranho, pois eu o via na água, todos esses dias. E no dia seguinte, e no seguinte. Mandei outro e-mail.
Silêncio.
Anos depois eu estive muitas vezes no Pier 26. Tive a chance de entrar no barco vermelho, no barco novo e até naquela lanchinha horrorosa. Não quis.
Meu pai foi meu primeiro herói. Ele morreu no dia 17 de dezembro de 1999; Klink foi o meu último herói. Ainda sem saber, minha idolatria por ele, e por qualquer outra pessoa, morreu em 17 de agosto de 2000.
Em 2012 tenho alguns casacos, de várias cores (inclusive vermelho) e começo a escrever minhas próprias histórias.
E vamos no pano mesmo!